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quarta-feira, 10 de março de 2010

Adágio africano: ” A borboleta é ave.”


Adágio africano: ” A borboleta é ave.”

Artigos

Manuela Lopes

Moamba


Desde que Joaquim assumira o seu lugar de apontador na estação ferroviária de Moamba, mantinha a mesma rotina, levantando-se de madrugada, sendo um dos primeiros a chegar ao escritório, não por escolha mas porque os deveres assim o obrigavam. Criteriosamente, dispunha os objectos sobre a secretária e conferia os apontamentos do dia anterior. Depois aguardava a chegada do resto do pessoal. Aquela hora quase não havia movimento na estação: meia dúzia de passageiros e alguns ociosos. O comboio das sete, sempre pontual, chegava com grande comoção, os freios rangendo e o rodado dos carris lançando faíscas. Pela hora do almoço, depois de uma refeição frugal, fumava um cigarro e cavaqueava com o chefe da estação, retomando o trabalho até às quatro ou cinco conforme o expediente. Ao sol-posto, a vila encerrava o comércio. Após um exaustivo dia de trabalho, o português habituara-se a receber a visita dos mestiços e africanos com quem estabelecera amizade, num vivo contraste com a mentalidade racista que se impunha. Ao serão, em sua casa, os amigos reuniam-se para uma jogatina de cartas. Discutia-se política e outros assuntos. Lá estavam Serafim Mapunga, um mulato membro da Associação Africana, uma organização que derivara do Grémio Africano, (fundado em 1918), o engenheiro de minas Goês Luís Rodrigues e dois intelectuais moçambicanos, Marco Toqueleque e Lourenço Tembe. Este último, um Tsua nascido em Mucoque uma povoação a norte de Vilanculos, exercia funções no “O Emancipador”, um pasquim que surgira em 1925, ano em que se registara a prisão de 300 trabalhadores na sequência de uma greve geral em Lourenço Marques, (actual Maputo) e da qual só os mais velhos tinham lembranças. A consciência de que o novo estado colonial continuava a marginalizar a maioria da população moçambicana, estimulava uma forte veia de radicalismo nos círculos mestiços da capital, constituídos maioritariamente por intelectuais. Ao contrário de exigir o seu fim, estes pretendiam apenas reformular o sistema, de modo a que o estado colonial fizesse jus aos ideais proclamados de assimilação, civilização e progresso. Acendendo um cigarro, Lourenço Tembe destacava a falta de oportunidades de educação e a questão da mão-de-obra forçada, assunto que inflamava fortemente o debate sobre a política portuguesa. - Vive-se num estado polícia encabeçado por Salazar! As suas políticas não são mais que uma fachada para as grandes corporações económicas, onde a liberdade nos é completamente negada - afirmava - O povo está reduzido à pobreza, à escravidão e a censura é usada para abafar a toda e qualquer oposição política! Joaquim ligou o rádio, procurando uma estação próxima. Uns acordes nostálgicos duma guitarra portuguesa e logo depois, a voz do fadista encheu a sala. Perguntou se alguém bebia alguma coisa. Marco Toqueleque comentava que, apesar da aparente tomada de consciência dos abusos do regime anterior, o xibalo,(expressão de sentido pejorativo, sinónima de escravo, que derivava de ku-bala, que significava escrever, uma vez que os trabalhadores dependiam apenas da simples anotação do capataz para serem aceites). Sob o eufemismo de “contratados”, a mão-de-obra braçal, ainda permanecia. A a maioria dos moçambicanos era forçada a trabalhar nas obras públicas, conquanto isso beneficiasse a comunidade. - É apenas uma maneira disfarçada de perpetuar a escravatura! - protestava vivamente. Luís Rodrigues, saboreando um licor, acrescentou que a nova legislação de pouco ou nada tinha servido e que a famosa “Carta Orgânica”, que pretensamente procurara garantir a autonomia financeira e a descentralização administrativa em Moçambique, era em si própria uma contradição, pois só a Assembleia Nacional detinha o poder. Perante um país fragmentado não só na administração mas também no desenvolvimento económico e nas infra-estruturas, Joaquim perguntava-se se não seria necessário mais do que uma carta para mudar a situação de iminente desintegração. - O mais extraordinário é que tendo em conta a expansão da economia e da administração colonial, existam tão poucos moçambicanos especializados nos sectores modernos deste país - constatava Toqueleque, prosseguindo - Os portugueses ocupam a maioria dos cargos baixos na estrutura colonial como fiéis de armazéns, escriturários e mecânicos, limitando não só as oportunidades dos africanos, como também a classe mestiça de entrar no sistema. Joaquim estava convicto que a culpa era da administração que dificultava o acesso dos africanos ao estatuto de “não-indígena”, sendo para isso necessário demonstrar um certo grau de educação. - Lamentavelmente - acrescentou, em resposta às declarações de Toqueleque - muito poucos adquirem esse estatuto. Só alguns que, por algum motivo são necessários... Serafim Mapunga afirmava que a raiz do problema residia no facto da educação chegar apenas a uma parte muito reduzida da população. - Os regulamentos de 1929 dividiram o ensino primário em “elementar”, destinado aos “não-indígenas” e “rudimentar”, destinados aos “indígenas” - dizia - Teoricamente estes últimos não permitem o acesso à formação técnica. Da rua vinham murmúrios e sons abafados. Joaquim espreitou por entre os cortinados. Embora fossem apenas alguns foliões que dessem vazão a sua alegria, já a polícia surgira inesperadamente dispersando os noctívagos. Qualquer manifestação pacífica, mesmo autorizada, era considerada rebelião pela polícia do regime.

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