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quarta-feira, 10 de março de 2010

ESCOLARIZAÇÃO DA INFÂNCIA: O TEMPO DE ESCOLA


Erica Piovam de Ulhôa Cintra
Doutoranda em Educação (Linha de Pesquisa: História e Historiografia da Educação) pela UFPR. E.mail: piovam@onda.com.br



Introdução


Todo início de ano, a mesma coisa: depois das férias escolares a preparação da volta às aulas. É a escola imperando os ritmos da vida social cotidiana e não tem mesmo jeito é assim e pronto. Mas será que “sempre” foi assim? A vista disso lançar um olhar para o passado nos leva a compreender que tal procedimento é algo recente na história da educação brasileira. Hábitos e costumes que, se hoje o temos por praxe, não foram “sempre” assim. Afinal, atos cotidianos levam tempo para se adaptar às nossas jornadas até os entendermos como algo a ser feito rotineiramente. A psicologia tem a sua forma de responder a essa questão e a história tem seu ponto de vista. Então, considerando apenas esse hábito – o do “volta às aulas” – sugiro aqui pensar sobre o percurso e a trajetória que nos legou esse costume de ansiarmos o tempo de escola, o tempo de aprender. Isso vai nos levar para um caminho ao encontro da história da escolarização da infância e de quando se tornou hábito a criança ir para a escola.

Nos tempos de escola...

Não é preciso ir ao início da civilização ocidental, aos gregos, para entender em que momento surgem os indícios que constituirão mais tarde a escola elementar enquanto locus privilegiado do aprender a ler, escrever e contar. Aliás, tomando-se o Brasil como exemplo, a escolarização da infância é de constituição bastante recente. Por justeza, a escola elementar pública no Brasil pode ser devedora, em alguma medida, dos descendentes da Hélade, mas o é, em muito maior medida, dos conterrâneos portugueses e até espanhóis Quinhentistas. Isso porque é nas “Índias do Brasil” que as coisas começam a acontecer na clássica seqüência da educação jesuítica à reforma pombalina, das aulas régias às reformas da instrução pública primária até a República e a constituição dos “grupos escolares” – este último considerado, no início do século XX, a materialização da modernidade educativa (a origem da escola pública primária brasileira) e “vitrines” do novo regime, o republicano. Com esse desenho, têm-se uma síntese geral (ainda que precária) da história da educação brasileira, essa que hoje se faz sob novas bases e que tem alcançado sobejamente o mercado editorial brasileiro.
Do Brasil-Colônia, o destaque à presença dos jesuítas como precursores dos primórdios da escolarização é fato consumado e conta com defensores de sua importância advindos inclusive da ilustrada intelectualidade brasileira de meados do século XX, pode-se citar como exemplo: Leonel Franca (1893-1948) ou ainda Fernando de Azevedo (1894-1971) – que dedica capítulo extenso à educação jesuítica na obra que procurou tornar o Brasil mais conhecido (A Cultura Brasileira, publicada em 1943) –, ambos marcados por essa educação confessional. Inclusive há que se notar, no caso de Azevedo, ele mesmo quase um jesuíta, não fosse ter sido mais uma vítima da dúvida existencial como ele mesmo diz em suas memórias publicadas em 1971 (cf.: Azevedo, 1971). Entretanto, a dúvida de uns é a firmeza de tantos outros, jesuítas. Num esforço de afirmação, os membros da recém-criada Companhia de Jesus (1534), desbravam mares e alcançam às Índias brasileiras (1549) e estabelecem novos campos de missão aos olhos da Igreja Católica. E encontram aqui solo fértil para sua semeadura que se pode dizer material e espiritual num período em que o “estatuto da criança” assumia, desde o velho mundo, contornos de importância e mudara de figura. Situação perceptível até mesmo nas pinturas que retratavam as crianças em novas formas e expressões: de alados anjos rechonchudos aos “pequerruchos” a vontade em cenas do cotidiano.
Assim, acompanhando um tempo em que a criança é compreendida de outro modo, os padres da Companhia de Jesus encontram nela o fundamental instrumento para o sucesso de sua missão e incutem nessa nova criança indígena – “papel branco” no qual se inscrevia, entre outros, a luta contra a antropofagia, a nudez e a poligamia –, a imagem do menino Jesus. E, de certo modo, os jesuítas inovam pelo atendimento educacional dos infantes. Afinal, era o ensino da doutrina, e do ler e escrever às crianças, uma das primeiras e principais preocupações dos jesuítas em terras Portuguesas. Soma-se a isso, os preceitos do “código prático de leis pedagógicas”: o Ratio Studiorum (1599) que passou a organizar o ensino de todos os Colégios da Companhia de Jesus em todo o mundo e que incluía a seleção dos 50 anos precedentes de experiência pedagógica da Ordem do qual contava a experiência local na produção do “código”. A despeito do rigor e da disciplina que pautava esse método de ensino, nem tudo foi pedra e cal. Os jesuítas que chegaram ao Brasil fizeram adaptações do método para a realidade que aqui encontraram. Assim, algumas concessões os auxiliaram no projeto missionário pretendido: “pregações na denominada ‘língua geral’, conhecimento da cultura nativa e busca de aproximação entre esta e a cultura européia, cura dos índios adoentados, tolerância e adaptação de ritos sacramentais, foram essas as principais inovações buscadas pelos jesuítas para auxiliarem na conversão dos indígenas.” (Bortoloti, 2003, p.9). Esse esforço, contudo, não significou ausência da dificuldade dos jesuítas em compreender e mesmo aceitar a cultura autóctone. Com o tempo e a despeito da pedagogia do medo ou ainda da “educação da conversão” (Daher, 2001), o desapontamento e o ressentimento dos jesuítas com os já educados meninos indígenas da Colônia, se tornaram crescentes. Isso porque eles não persistiam no reto caminho aprendido, especialmente no momento da adolescência, chamado “momento do rompimento” (Del Priore, 1998, p.23-25). Era como se a catequese inaciana já ‘pressentisse’ seus dias contados.
Passado poucos séculos e com uma significativa expressão em termos de difusão da educação jesuítica na Europa – eram mais de quinhentos colégios e cerca de 150 mil alunos ao cargo dos jesuítas dispersos naqueles países (Caron, 1996, p.139) –, em 1759, os padres da Companhia de Jesus são expulsos da Metrópole e das Colônias portuguesas pelo então Conde de Oeiras (título instituído neste mesmo ano à Sebastião José de Carvalho e Melo), depois Marquês de Pombal (instituído em 1769). Dá-se início ao que ficou conhecido como “reforma pombalina” da instrução pública que longe de significar um desvario contra a organizada educação formal à época significou, como afirma Laerte Ramos de Carvalho, a “expressão de uma época” ou ainda o “denominador comum de opiniões” (Carvalho apud Bomtempi Jr, 2000, p.158) e não apenas de um ministro, e que pretenderam colocar o reino português em situação de competitividade econômica e cultural, com as potências estrangeiras; daí a necessidade de atenuar ao máximo os privilégios das ordens religiosas no reino, também porque “a vida monástica estaria desviando muitos braços da indústria nacional” (áreas comercial e marítima, especialmente, conforme Bomtempi Jr, 2000). A par desse compasso, surgia o primórdio da história da escola pública no reino português com a substituição do ensino jesuítico pelas aulas régias, sistema esse que perdurou no Brasil até o ano de 1834. Os “estudos menores” ou ainda as escolas de “primeiras letras” e de disciplinas do equivalente ensino secundário foram assumidos pelo Estado e lecionados na casa dos régios (mestres e professores) – o primeiro prédio destinado à educação pública data de 1870, no Rio de Janeiro (Cardoso, 2005, p.179-188). Os “estudos maiores” – os superiores – se faziam na principal universidade do reino, a Universidade de Coimbra.
Com a vinda da família real demarcando o Estado Imperial brasileiro, entendido esse como “tempo de passagem” ou ainda como questiona Faria Filho (2003, p.135) acerca da “nossa idade das trevas”, a questão da educação brasileira não sai de cena e vê-se continuadamente em discussão nas atividades legislativas das Assembléias Provinciais. A necessidade da escolarização da população, sobretudo como dito nos jornais mineiros, os das “camadas inferiores da sociedade” aí constituídos por negros (livres, libertos e escravos), índios e mulheres, estava em pauta. Mas as discussões do século XIX acabariam por não gerar, naquele momento, ações muito efetivas no que diz respeito à escolarização. Contudo, é preciso considerar que, de um lado, a presença do Estado na educação era ainda muito pouco representativa e, de outro, a própria instituição escolar ainda não ocupava ali um lugar de destaque. Aspectos que acabariam por mudar lenta e paulatinamente no decorrer do século XIX. Até o método de ensino (do individual para o mútuo ou lancasteriano e depois para o misto, o simultâneo e o intuitivo - esse último com “lições de coisas” e que perdurou até os anos 30 do séc. XX) foi tema de deliberação visando abreviar o tempo (e os gastos) do acesso às primeiras letras e dão mostras da possibilidade de existência de variados modelos de escolarização. O acesso às primeiras letras fazia-se, a exemplo dos métodos, de diferentes formas: na casa dos professores ou nas fazendas (com ou sem auxílio estatal) ou ainda em redes de escolarização doméstica (sem freqüência escolar e chamadas de escolas particulares ou domésticas) ou ainda com preceptores, ou mesmo de forma mais organizada em colégios masculinos e femininos (confessionais). No final desse século, o entendimento de que a “instrução” ou “educação primária” devesse estar ordenada sob preceitos estabelecidos por “modernas” leis gerais – o progresso da nação pelo progresso das letras – ou ainda que devesse ter um espaço específico para uma ação eficaz, exigiria no século seguinte, a instituição de novas formas de escolarização (Faria Filho, 2003, p.135-149).
No final do XIX a disseminação de novas práticas educativas e de seus desdobramentos, como os materiais didático-pedagógicos, ou ainda as normativas acerca de uma “reforma de costumes” de base higiênica (Rocha, 2003) reforçavam a tese da necessidade de espaços salutares e próprios para a escolarização, especialmente para a educação infantil. Mudanças na esfera política com o período republicano, também marcariam esse tempo. Mudanças urgentes precisavam acontecer, daí a emergência dos grupos escolares, os templos do saber daquele tempo. E eles responderiam as expectativas a eles imputadas? A julgar pelo recente trabalho de um conjunto de atuais historiadores da educação, a resposta é afirmativa. Ao aglutinar em um mesmo edifício as antigas escolas isoladas, ao organizar a docência no ensino seriado e seqüencial sob a autoridade do professor, ao regular a escola pela introdução da figura do diretor e ao produzir “uma nova hierarquia funcional pública” (Vidal, 2006) se corrobora para afirmar ainda mais essa questão. Os grupos escolares significaram a organização da escola primária a nível nacional, representativa de um período (oito décadas) que procurou projetar e projetar-se como uma virada pragmática no sentido educacional, político e cultural brasileiro. E de certa feita, uma grande virada. O reordenamento do tempo e dos espaços escolares em um lugar próprio para a escolarização da infância, entre outros elementos concernentes à “cultura material”, são todos signos que evidenciam a realização máxima da racionalização empreendida e permitem ainda hoje, através dos seus vestígios pensar as práticas, a cultura escolar e a educação que foi ali projetada. Permite, em certa medida e para além do seu tempo, considerar os (des)caminhos da escola primária atual.

Concluindo

Por isso, ao retomarmos hoje outra vez mais o olhar para o tempo de escola, o tempo de aprender, imperioso lembrar que a escola pública brasileira, em especial a relativa à educação fundamental, é uma instituição ainda um tanto quanto recente (século XIX) que busca, apesar de todos os pesares como as referentes à questão salarial do professorado e mesmo das insistentes alterações da prática pedagógica e da organização escolar (que, no caso dos ciclos, tendem mais a complicar do que acelerar o avanço educacional dos nossos pequenos), ampliar as bases para o atendimento da população brasileira para a instrumentalização fundamental a esse amplo mundo de conhecimentos que se tem hoje. Saber ler, escrever e contar é apenas o elementar começo – essencial e necessário para a vida no mundo de várias linguagens como o de nosso tempo presente e o compromisso social e político para a construção de uma cultura e sociedade que se almeja construir. Afinal, se toda educação tem um sentido, uma finalidade específica, um objetivo (ou vários), cabe a cada um de nós, em especial os educadores, pensar o sentido que está sendo posto em prática hoje.
Mais sobre o tema: consulte as coletâneas organizadas por Souza (2007), Gondra (2002) e Monarcha (2001).

Referências

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GONDRA, José Gonçalves (Org.). História, infância e escolarização. Rio de Janeiro: 7Letras, 2002.
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VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Grupos escolares: cultura escolar primária e escolarização da infância no Brasil (1893-1971). Campinas: Mercado de Letras, 2006.

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